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FELÍCIO ROCHO
A esclerose múltipla (EM) é uma doença neurológica desmielinizante do sistema nervoso central, autoimune e crônica. O que esta frase, aparentemente complexa, significa é que existe um ataque do próprio sistema imunológico do paciente à estruturas do sistema nervoso central, que no caso da esclerose múltipla é à bainha de mielina, estrutura responsável por revestir o axônio do neurônio. Este pode ser entendido como o “fio” que leva a informação do neurônio para outra região. Este ataque à bainha de mielina faz com que o paciente possa desenvolver sintomas neurológicos de acordo com a região acometida.
Trata-se de uma doença mais comum em mulheres, de modo que a cada quatro pacientes acometidos com a EM, três são mulheres. O primeiro sintoma surge, em geral, entre 20 e 40 anos de idade, sendo o pico de incidência próximo de 29 anos.Trata-se de doença rara, estimando-se aproximadamente 40 mil pessoas no Brasil que vivem com a EM. Dessa forma, contrariando o que muitos pensam, a esclerose múltipla não é uma doença de pessoas mais idosas, mas sim de pessoas jovens, na fase da vida em que existem muitos planos profissionais e pessoais.
Alguns fatores de risco são conhecidos para a doença, de modo que pode-se dividir em fatores de riscos modificáveis e aqueles que não são modificáveis. Dentre os fatores que não conseguimos modificar, como descrito acima, pacientes do sexo feminino tem maior predisposição à doença, assim como descendentes diretos de europeus. Apesar de não ser uma doença genética ou hereditária, sabe-se hoje que alguns genes quando presentes aumentam o risco da doença. Porém, alguns fatores podem ser modificados reduzindo esse risco ao longo da vida: hábitos de vida como tabagismo e sedentarismo são fatores de risco não só para o início da doença, mas também fatores de doença mais grave em pacientes que convivem com a EM. Existe uma relação entre exposição solar com a incidência da doença, de modo que pode-se observar uma maior prevalência da doença em países mais ao norte, longe da linha do equador. O mesmo vale para os níveis de vitamina D no sangue – níveis muito baixos podem aumentar a chance de surto da doença e também de início do quadro. É comum que pacientes com EM apresentam níveis diminuídos da vitamina D uma vez que sua absorção é menor devido alterações da flora bacteriana do trato gastrointestinal. Mas vale reforçar que apesar dos níveis baixos serem fator de risco para EM, não existe benefício na reposição de altas doses de vitamina D, além do fato de haver risco de intoxicação quando isso é feito. Por fim, alguns vírus tem sido muito estudados no risco de desenvolver EM, como é o caso do vírus Epstein-Barr (EBV). Vírus da família herpes vírus, o EBV já foi descrito em associação com outras doenças que envolvem o sistema imunológico e alguns estudos recentes demonstram uma importante relação de sua prevalência em pacientes com EM.
Exatamente por acometer pacientes jovens, no auge de sua vida produtiva seja em termos pessoais ou profissionais, existe um esforço significativo no desenvolvimento de terapias que possam controlar a doença. Quando falamos em surto da EM, estamos descrevendo sintomas neurológicos que quando ocorrem, levam à incapacidade. No início da doença é muito comum que haja recuperação completa dos sintomas, mesmo que nenhum tratamento seja iniciado. Esse é um dos fatores que por vezes contribuem para o atraso diagnóstico. O grande objetivo do diagnóstico precoce e início de tratamento rápido da doença é evitar que, após um surto, a paciente não consiga recuperar completamente seus sintomas, de modo que acumule incapacidade e apresente prejuízo em sua qualidade de vida. Definimos um surto da doença como um sintoma neurológico típico, que dure mais de 24 horas e apresente uma evolução subaguda, ou seja, que ao longo de alguns dias apresente uma piora gradativa. Tratando-se de uma doença do sistema nervoso central, os sintomas neurológicos típicos são marcados por dificuldade visual (quando há acometimento do nervo óptico), alterações de sensibilidade ou motricidade em membros inferiores (quando há acometimento da medula espinhal), podendo se apresentar também como visão dobrada, paralisia facial e neuralgia do trigêmeo (quando acomete tronco encefálico), além de quadros de desequilíbrio, vertigem e incoordenação motora (quando acomete o cerebelo). Quando o médico avalia esses sintomas, é importante pensar em diagnósticos diferenciais, além de afastar infecções que possam simular o quadro.
80 a 85% dos pacientes com EM apresentam uma forma recorrente da doença, a qual é denominada esclerose múltipla remitente-recorrente (EMRR): marcada por surtos recorrentes da doença, com períodos de remissão entre eles. Os surtos podem ocorrer com intervalos de anos ou intervalos de poucos meses, em pacientes que apresentam doença mais ativa. Com o passar do tempo, existe um risco dos pacientes iniciarem com piora dos sintomas e de sua incapacidade, independente da presença de surtos, fase classificada como esclerose múltipla secundariamente progressiva (EMSP), que corresponde a 10-15% dos pacientes com EMRR, que pode ser ativa (quando ainda manifestam alguns surtos) ou inativa (quando não há recorrência dos surtos, mas existe progressão da doença). Menos comumente o paciente pode manifestar uma piora de incapacidade dos sintomas desde o início da doença, sendo denominada esclerose múltipla primariamente-progressiva (EMPP).
Essas diversas formas da esclerose múltipla tornam o seu diagnóstico por vezes muito desafiador. É necessário lançar mão de exames complementares que possam corroborar a hipótese, além de afastar diagnósticos diferenciais. A ressonância magnética de encéfalo e medular espinhal é muito importante para que possamos identificar as lesões que são típicas da EM. Além disso, o exame de punção lombar e análise do líquido cefalorraquidiano (líquor) também é importante e pode auxiliar no diagnóstico precoce, como preconizam os critérios diagnósticos mais recentes (McDonald, 2017).
Avalia-se a incapacidade do paciente com esclerose múltipla à partir de uma escala denominada EDSS (Expanded Disability Status Scale). Quando pensamos sobre a história natural da doença, ou seja, em sua evolução quando não é realizado nenhum tratamento, observamos que a população com EM demora, em média, 15 a 20 anos para alcançar um EDSS de 6, escore que reflete a necessidade de apoio unilateral (uso de bengalas, por exemplo) para se locomover. Apesar de parecer muitos anos, como estamos lidando com pacientes que iniciam a doença próximo de 20 anos de idade, estamos afirmando que entre seus 40 e 50 anos de idade ele irá precisar de bengala para se locomover. Ao iniciarmos um tratamento temos como objetivo mudar a história natural da doença, fazer com que esses 15 a 20 anos possam ser 20, 30 anos, ou mais se possível. Então ao perguntar para um neurologista que trabalha com esclerose múltipla qual o seu objetivo com o tratamento da doença, uma resposta simples seria: evitar a incapacidade.
Um paciente com EM pode acumular incapacidade de duas formas, se fossemos descrever de maneira simples: ele pode apresentar um surto da doença e não se recuperar completamente (termo denominado RAW – relapses and worsening) ou então apresentar progressão dos sintomas independente de surtos (termo denominado PIRA – progression independent of relapses activity). Para que isso possa acontecer, devemos tratar de forma eficaz o mais cedo possível, exatamente para não haver risco de acúmulo de incapacidade. As primeiras terapias para EM foram lançadas na década de 90, de modo que houve um crescimento quase que exponencial nas opções terapêuticas nos últimos anos, tornando o tratamento individualizado uma meta para os neurologistas. Tratando-se de doença autoimune, as terapias para EM visam controlar a ação principalmente dos linfócitos do tipo T e B. Com o avanço da tecnologia, fomos capaz de compreender ainda mais a fisiopatologia da doença para criação de terapias mais eficazes. Existem hoje, no Brasil, as seguintes terapias liberadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), sendo algumas previstas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e Agência Nacional de Saúde (ANS): interferon beta-1a, interferon beta-1b, acetato de glatirâmer, teriflunomida, fumarato de dimetila, fingolimode, siponimode, natalizumabe, alemtuzumabe, ocrelizumabe, ofatumumabe e cladribina. Cada um desses medicamentos apresenta mecanismo de ação distinto, além de eficácia também diferenciada em relação aos outros.
Passamos hoje por um período de mudanças de paradigmas, em que iniciamos um questionamento sobre a forma de tratar a esclerose múltipla. Após o surgimento dos anticorpos monoclonais, como natalizumabe, ocrelizumabe, alemtuzumabe e ofatumumabe (mais recentemente aprovado e incorporado pela ANS, em agosto de 2023), percebemos que esses medicamentos eram capazes de controlar a taxa de surtos e o acúmulo de incapacidade de forma mais eficaz do que os demais, razão pela qual passamos a denominar esse grupo de medicamentos como “medicamentos de alta eficácia”. Não só no Brasil, mas em grandes centros do mundo, houve um questionamento se deveríamos ou não mudar a forma de tratar a doença – hoje existe uma recomendação para que façamos um tratamento em escalonamento, ou seja, iniciamos com medicamento de baixa eficácia e teoricamente mais seguro, que seria trocado por outro medicamento de maior eficácia apenas em casos de surto da doença. O que questionamos hoje é se submeter o paciente ao risco de um novo surto e possivelmente novo acúmulo de incapacidade seria adequado. Será que não deveríamos iniciar o tratamento com o medicamento de maior eficácia? Havia um questionamento se os novos medicamentos seriam totalmente seguros, se seus efeitos colaterais não poderiam mais prejudicar o paciente do que auxiliá-lo em sua história. Porém, esse receio era aceitável quando havia pouco tempo e pouca experiência com o uso destes medicamentos. Hoje já temos dados de década de uso, que nos ensinaram sobre as cautelas, sobre a sua segurança e principalmente sobre a sua indicação, tornando o objetivo de tratamento individualizado cada vez mais possível. Dois grandes estudos estão em fase de finalização, chamados de TREAT-MS e DELIVER-MS, desenhados como estudos clínicos randomizados para comparação do início precoce de tratamento de alta eficácia e tratamento em escalonamento, criando uma grande expectativa na comunidade científica sobre esse novo olhar para o tratamento da esclerose múltipla.
Mas de nada vale um tratamento medicamentoso adequado, se o paciente não apresentar uma rede de apoio sustentável. É importante para o paciente com EM entender que a sua vida não pode parar diante o diagnóstico. Devemos sempre ser protagonistas na nossa história, não deixando que o diagnóstico de uma doença crônica nos impeça de progredir em nossos planos. Por isso, o ambulatório de neuroimunologia do Hospital Felício Rocho apresenta como grande objetivo o acolhimento e a empatia. Poder oferecer ao paciente um espaço em que se sinta confortável para esclarecer suas dúvidas, compartilhar seus receios e planos, além de ter um seguimento adequado e escolha de tratamentos individualizados, colocando o paciente como protagonista de sua própria história.
Refêrencia Técnica - Dr. Davi Teixeira Urzedo Queiroz - Neurologia e Neurocirurgia
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